domingo, 21 de outubro de 2012

Ode ao entorpecimento


         Por vezes andamos tão inebriados na viagem que a realidade passa-nos ao lado, como pano de fundo. Quem nunca esteve no autocarro a olhar pela janela, a ouvir a sua música preferida e a pensar em tudo menos no cenário que acabamos de observar? Seja ele idílico ou degradante, simplesmente não é tão importante como aquele pensamento que teima em agarrar-se ao cérebro.

            Somos os turistas da realidade, e por vezes levamos um abanão tão grande que todo o entorpecimento cai por terra. Por uma vez sentimos todos os nervos do nosso corpo, todos os estímulos da realidade, somos o mundo e fazemos parte dele. De repente criamos uma opinião de algo que há 3 segundos atrás, para nós, nem tinha nome, era algo banal, sem importância comparado com o grande sofismo em que estamos concentrados.

            Este foi o caso de Amanda Todd, a rapariga de 15 anos que viu de tal forma a sua imagem degradada, não só no cyberespaço mas também no mundo “real”, que andou a viajar de cidade em cidade para ver findos os abusos que eram cometidos contra ela. Porém, como todos sabemos, a internet é um país sem fronteiras. Para onde quer que vamos, ela vai connosco. Nela existem pessoas desconhecidas e interessantes, que nos fazem sentir bem, mesmo quando todo mundo está contra nós. Lá podemos encontrar um ombro amigo que nos compreende e que está disposto a ajudar-nos.

            Sim, foi isso que esta adolescente, com cerca de 12 anos de idade pensou, quando um desconhecido, via Facebook, se tornou um confidente, um ombro amigo, um ser afável, que, quando ela se sentia feia, ele garantia que ela seria o ser mais lindo que ele tinha visto, quando ela se sentia sozinha, ele prometia que estaria sempre lá. Com 12 somos levados a ignorar o perigo, a saltar penhascos. As mudanças são muitas, a pressão é mais avassaladora que uma avalanche. Queremos sentir que somos especiais, mas afinal esse não é o objectivo de qualquer ser humano, sentir-se especial, sentir-se importante, sentir-se reconhecido por alguém no meio de 1 milhão de rostos?

            Durante um ano foi assim que Amanda se sentiu, até que lhe foi pedido que esta enviasse uma foto dos seus seios, mais uma vez via Facebook. Como sabemos, depois de enviada, a informação é gerida pelo destinatário da mesma. A partir daí os pedidos daquele individuo foram mudando, de repente já não era um fiel amigo, mas um carcereiro, que ordenava a sua vontade. Como esta não se dobrou aos caprichos deste indivíduo, este enviou a imagem para todos os amigos da adolescente, criou páginas na rede social Facebook.

            A sociedade, sim a sociedade, garantiu o resto, pois vejamos, o ser humano só se lembrou desta adolescente, quando esta conseguiu libertar-se da prisão a que chamamos realidade. Julgamentos á parte, até à data da sua morte, esta não foi apoiada pela sociedade que agora chora a sua morte, mas perseguida e abusada verbal e fisicamente na escola, na sua cidade. Amanda fugiu uma, duas vezes mas os abusos recomeçavam assim que os seus colegas tinham acesso á sua história.

            Como Amanda Todd, existem milhares de adolescentes, crianças, adultos, em todo o mundo a sofrer de abusos diários e continuados, que nós, da nossa pomposa obtusidade chamamos de Bullying, e continuamos a permitir que isto continue e continue. A nossa busca pela normalidade, pela coesão social, leva-nos a não tolerar a diferença, castigar quem achamos que merece, seja por ele ser gordo, ou por ter o nariz grande, ou por gostar de algo que nós simplesmente achamos que não vale a pena. Bullying não é uma forma de ensino, nós não somos juízes, a diferença não deve ser um crime, nem devíamos falar de tolerância, devíamos falar de direito á diferença.

           
Quantos mortos pela diferença precisamos mais? Quanta violência estamos dispostos a aceitar até que estas situações desapareçam? Porque é que só procuramos um culpado num cenário onde somos todos cúmplices?

            Apesar de ser mais fácil virar a cara para o lado, murmuramos á noite “ele ou ela mereceu o que lhe aconteceu, afinal é para ajudar, para se tornar normal”, tornamo-nos cúmplices neste jogo perverso de construções e rótulos, que nos levam a etiquetar e a desqualificar o ser humano.

            Nós não somos peões, não estamos num jogo de xadrez, uma peça que cai no jogo seguinte não volta ao tabuleiro. Sempre que ignoramos estas situações somos responsáveis pela tortura de um ser humano durante toda a sua vida, pois abusos podem parar, mas deixam marcas, feridas que nem os mais resistentes pontos podem coser.

            Bullying não acontece só nos estados Unidos, acontece todos os dias nas escolas dos nossos sobrinhos, nossos irmãos, filhos, amigos. Não é um rito de passagem, o abusador não tenta ajudar, mas sim a destruir. O bullying não é passageiro é um crime, por favor não deixem mais adolescentes morrer por terem personalidade, interesses ou características diferentes.
 
Luís Vasconcelos

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